segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Mario Quintana por RUTH TRINDADE

SOBRE OS QUINTANARES DE QUINTANA



Meu Quintana, os teus cantares
não são, Quintana, cantares:
são, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
Insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares![1]



Disse, certa vez, o poeta Manuel Bandeira, que o gaúcho Mario Quintana não canta e sim quintana. Mas o que seria então, quintanar? O que há de particular na obra poética de Quintana que justifique a inauguração de um verbo próprio? No sentido de tentar compreender o universo poético do escritor aqui celebrado, escolhi abraçar essa aventura a partir da própria consciência poética do escritor. Afinal, são os versos os lugares onde se dão as mais elaboradas e, especificamente aqui, simples reflexões sobre poema, poesia e criação poética. [2]

Como pensar em um poeta que, em plena efervescência do movimento modernista e sua quebra de paradigmas, inaugura o seu espaço no meio literário com a publicação de um livro de sonetos (A rua dos cataventos)? Não, não é somente porque ele não estava inserido nos acontecimentos dos centros Rio de Janeiro e São Paulo, onde, principalmente, o quadro do modernismo era pintado. Antes disso, parece mais um poeta que não se deixa levar por modismos e que, apesar de ainda iniciante, já se mostrava maduro.

Logo no Soneto I de A rua dos cataventos, em seus primeiros versos publicados, o poeta já deixa transparecer a sua consciência poética e a sua preocupação com a criação de um poema. No soneto, as imagens de uma folha sendo preenchida e de uma paisagem que se abre através da janela, se confundem. Ambas “páginas desertas” pintadas pela luz do sol que brinca e chega a fazer o poeta esquecer daquilo que o motivou a escrever. Pois a poesia está além da razão e da memória, está além do que se pode chamar de sujeito e de escritor. Está antes para o poeta, aquele que se deixa levar

[1] Trecho do poema A Mario Quintana, de Manuel Bandeira, com o qual o poeta foi saudado em sessão da Academia Brasileira de Letras, em 25 de agosto de 1966, segundo QUINTANA, 2005, p 76.
[1] Os poemas selecionados aqui para basear o trabalho foram: Sonetos I, VI, XXII (In: A rua dos cataventos, 1940) e Canção do Amor Imprevisto (In: Canções, 1946).

pelas luzes do sol e transforma, a si mesmo, por entre os versos, naquilo que preenche as “páginas desertas”. Paisagem? Poesia!


No Soneto VI do mesmo livro, o poeta é chamado de “operário triste”. A marca da tristeza poderia ser explicada pela própria vida do poeta, conhecido por sua melancolia e solidão. Mas, como disse anteriormente, não é a isso que me proponho. Parece mais interessante associar a tristeza do operário ao trabalho solitário e silencioso do poeta. Enquanto o sapateiro bate a sola e o carpinteiro canta, fatos que distraem o menino doente na janela, o poeta não emite nenhum barulho e, sozinho com sua tristeza, trabalha para construir aquilo que realmente pode curar as mazelas.

Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente.


A ênfase na dificuldade da escrita e na minúcia do trabalho de escritor, que percebo neste soneto, marca novamente a compreensão e aceitação de Quintana quanto à impossibilidade do poeta de dominar e controlar a sua poesia, já que a poesia ultrapassa todos os mecanismos que o homem possa criar para alcançá-la, sejam eles rima, métrica, ou qualquer outro. E é sobre a obscuridade do universo poético de que fala Quintana, ainda no mesmo livro, no Soneto XXII. “Vontade de escrever quatorze versos...”, e assim nasce um soneto. Simples? Talvez... E quem explica? Nem mesmo os poetas sabem ao certo o que há entre a motivação do poeta e a poesia em si. E é esse mistério, essa inquietação diante do desconhecido, que faz com que nós, leitores de poesia, possamos nos deliciar em versos como estes:

Quem sabe lá que estranhos universos
Que navios começaram a afundar...
Olha! os meus dedos, no nevoeiro imersos,
Diluíram-se... Escusado navegar!

É inútil continuar, pois o desconhecido envolve o poeta pelas mãos. Mas tão convidativo é o nevoeiro, que nada resta ao poeta a não ser se render aos encantos sombrios que o devasta e, humildemente, entoa um “Vamos andando entre os nevoeiros frios... / Vamos andando... Nada mais existe!...”. E se a busca pela simplicidade, tão difícil de alcançar, é o caminho para a solução desse mistério, ouso afirmar que Mario Quintana foi um dos que mais chegou perto de respostas. Mas, de volta aos quintanares...


Em Canção do Amor Imprevisto, um dos últimos poemas do livro Canções, publicado em 1946, não é sobre o fazer poético que o poeta se volta. Apesar disso, sua poesia, que ocupou lugar central em sua vida, transparece nos versos como “um vício triste / Desesperado e solitário” que o poeta faz de tudo para abafar. Não se trata aqui de explicar a obra de Quintana a partir de sua própria vida, como num jogo de reflexos de espelhos, mas sim de buscar compreender a sua poesia enfatizando as suas particularidades.


O que seriam então esses quintanares de que falou Bandeira? Antes num prelúdio que num tratado racionalmente controlado e comprovado, aventuro-me a decifrar o que o próprio Quintana, por entre seus versos, pontuou como a quinta-essência de sua obra. Pelos poucos poemas explorados aqui, parece razoável identificar a tristeza e a solidão como características próprias da criação poética de Quintana; não como temas, mas como meios imprescindíveis, para o poeta, de alcançar o estado poético e concretizar a sua “vontade de escrever quatorze versos...”

REFERÊNCIAS

FISCHER, Luís Augusto, FISCHER, Sérgio Luís. Mario Quintana: uma vida para a poesia. Porto Alegre: WS Editor, 2006.

QUINTANA, Mario. Org. Tânia Franco Carvalhal. Mario Quintana: poesia completa em um volume. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005

RUTH TRINDADE

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